PAZ, ELES DIZEM

Atraídos pela sugestão de como algumas frequências podem agir contrárias à percepção dos seres humanos, deixando-os inertes ou quase que desprovidos de sensibilidade, resolvemos começar pela materialidade do excesso – do indiscernível, ruidoso, vulgar ou demasiado bruto. Em um primeiro momento, o procedimento partiu de acúmulos que, por meio de filtros, exclusões e atenuação de intensidades, fizeram o material tornar-se, pouco a pouco, econômico, simples, silencioso, mas não menos nebuloso e movente. Um procedimento de composição pela decomposição.

Para as imagens, buscamos explorar a técnica fotográfica de longa exposição, aplicando-a na linguagem de vídeo. A técnica basicamente consiste em deixar o obturador aberto por mais segundos que o instante de captura fotográfica. O efeito que se obtém é o excesso de frequências luminosas e imagéticas que atravessam o sensor da câmera, provocando arranhões e borrões – imagens fantasmas que desmancham, vaporizam-se, perdendo a forma real com que os olhos humanos normalmente as vêem.

Com a proposta dos excessos luminosos, investigamos as pinturas de Turner, observando que o artista desmanchava as figuras pintadas em tela por meio de suas mãos e gestos. O quadro abaixo foi pintado em uma época de desenvolvimento das máquinas modernas, do qual o pintor foi crítico. Este quadro leva o título de “Chuva, vapor e velocidade”.

Rain Steam and Speed. The Great Western Railway. Joseph Mallord William Turner

(um primeiro título para nosso trabalho: Chuva, vapor e velocidade)

A partir dessas ideias e referências reunidas a uma inevitável revolta da violência do/no Brasil – genocídio, fome, miséria –, o trabalho assumiu outro lugar. Decidimos inserir o poema “Eles lutam pela paz”, do árabe Shaker Abdur-Raheem Aamer, detido por 13 anos (sem acusação e julgamento) em Guantánamo (Cuba), depois de entregue às forças militares americanas. Como outros prisioneiros, ele foi exposto à tortura, privação de sono, música estridente e ruidosa, frios extremos e solitárias prolongadas. Estas pessoas escreviam poemas escondidas em suas celas – o Pentágono as considerava ameaças para a segurança nacional dos EUA. Sem lápis e papel, faziam uso de recursos como copos de isopor, que eram passados de cela em cela até serem jogados em latas de lixo.

Os poemas (compreendidos como estratégia de manutenção da sanidade, memória e humanidade) tornaram-se conhecidos a partir dos esforços de advogados dos prisioneiros, que recuperaram parte das obras, publicadas no livro Poems from Guantanamo: the detainees speak (University of Iowa Press, 2007).

Eles lutam pela paz
(Shaker Abdurrahmen Aamer)
Paz, eles dizem.
Paz de espírito?
Paz na terra?
Paz de que espécie?
Vejo-os falar, discutir, combater –
Que espécie de paz procuram?
Por que matam? O que estão planejando?
Serão palavras vazias? Por que discutem?
Será tão simples matar? É esse o seu plano?
Sim, é isso, claro!
Eles falam, discutem e matam –
Eles lutam pela paz.

PATRÍCIA BIZZOTTO (MG)

Mestre em Filosofia, se dedica à composição sonora e musical para dança, teatro e vídeo. Como compositora, intérprete e performer, pesquisa os limites da música de concerto contemporânea. Suas obras exploram a concomitância de situações musicais, espaços acústicos distintos, improvisação, acaso, espaço performativo, artistas "não músicos", corpos, proposições e liberdades das pessoas com quem cria coletivamente. Bizzotto ainda desenvolve trabalhos solos em vídeo-performance – aqui, experimenta improvisações dirigidas pelo conceito de fusão (entre personagens, espaços e tempos), a fim de deformar hierarquias e protagonismos antropocêntricos.

LUCAS MORAIS (MG)

Mestre em Filosofia da Linguagem, atua como artista audiovisual com ênfase em composição de trilhas para vídeo-arte e peças de teatro. Realizou intercâmbio, entre 2016 e 2017, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) e Universidade de Belas Artes da mesma cidade. Também em Portugal, participou do programa de residência artística internacional da Associação Cultural Sonoscopia, uns dos principais espaços dedicados à música experimental do país. É integrante do grupo experimental Constantina, com o qual assina nove discos.